sábado, 5 de maio de 2012

OPINIÃO DA RBS.


OPINIÃO DA RBS

O direito à verdade

Se pairava alguma dúvida a respeito da utilidade de uma Comissão da Verdade para investigar a história recente do país, o livro e os depoimentos do ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social do Espírito Santo Cláudio Guerra fornecem justificativas incontornáveis para a realização de uma apuração oficial, com a chancela da lei, do Direito e do Estado, sobre o destino de pessoas torturadas, mortas e desaparecidas durante o regime militar. Hoje pastor evangélico e supostamente arrependido de seus atos, Guerra revelou em depoimento a dois jornalistas, que deu origem ao livro Memórias de uma Guerra Suja, que pelo menos 10 corpos de presos políticos executados teriam sido incinerados numa usina de açúcar no norte do Estado do Rio em 1973. Entre as vítimas, estariam o gaúcho Joaquim Pires Cerveira e o catarinense João Batista Rita. Ambos integram a lista de 136 desaparecidos no Brasil durante o regime militar apresentada desde os anos 1980 às autoridades por familiares e organizações de direitos humanos.

Não se pode, de antemão, assumir como verdadeiras as afirmações de Guerra. É legítimo que sejam questionadas a idoneidade do denunciante (acusado de diversos crimes, ele foi condenado a 42 anos de prisão em regime fechado por um atentado a bomba em Vitória e responde a processo pelos assassinatos da própria mulher e da cunhada) e suas motivações (as revelações vêm a público quase 40 anos depois dos acontecimentos). Um fato, no entanto, é de todos conhecido e está inscrito na história brasileira: é ignorado o paradeiro dos corpos de mais de uma centena de oposicionistas que, entre os anos 1960 e 1970, se engajaram em enfrentamento armado com forças policiais ou militares ou foram vistos sob custódia em órgãos públicos.

É inadmissível que o Estado negue às famílias e à sociedade brasileira o direito à memória, ou seja, o de esclarecer total e irrevogavelmente o destino dessas mulheres e homens. A Comissão da Verdade tem essa missão. Não se trata de um instrumento de revanchismo com potencial para ressuscitar conflitos. Trata-se, isto sim, da proposta de resgatar um direito elementar, anterior à democracia constitucional e ao Estado de direito, consagrado pelas grandes religiões e pela arte clássica. Cumpre lembrar, finalmente, que os direitos humanos são um campo cada vez mais internacionalizado do Direito e que não são poucos os que consideram ser sua proteção um dever de todas as nações. Ora, num mundo em que genocidas e outros suspeitos de crimes contra a humanidade são cada vez mais alvo de processos em tribunais internacionais, não podemos cometer o erro de recusar a investigação do ocorrido em seus Anos de Chumbo, sob pena de se correr o risco de nos equipararmos a Estados párias. Verdadeiro ou falso, no todo ou em parte, o depoimento do ex-delegado reforça a convicção de que o Brasil e os brasileiros têm o direito de saber a verdade.